A aplicação teórica de assuntos práticos e relativos á questão do ser adjudicado à alma do animal que nasce dentro de todos nós.

segunda-feira, julho 30, 2007

Os Inóticos Parte 1 Capitulo 7

*

Aquilo tem de estar por aqui! Raul já virou o sótão da sua casa todo do avesso. Aquilo tem de estar algures. Desde manhãzinha que anda à procura por todo o sótão e ainda não olhou para a caixa de metal que está na janela. É lá que está guardado o ma­terial de desenho que pertencera ao seu pai.

Raul volta a dar mais uma volta pelo bendito sótão sem olhar para a caixa. Esta divisão da casa é bastante abafada e empoeirada. Raul dirige-se à janela para arejar o espaço quando, finalmente encontra o que queria! Desce para o escritório e mete mãos à obra.

Primeiro, antes de tudo, faz-se o mais importante. Pega no pente e desfaz a poupa em forma de antena parabólica, pois este é o seu penteado de pesquisa e volta a pen­tear-se com o penteado de concentração intelectual.

Ele tem que acabar o trabalho antes da Sexta-feira. Pode ser que desta vez con­siga convencer o gordo a editar o seu trabalho.

Vai dar muito que fazer e vai ocupar todos os dias da semana que falta.


*

Passaram-se horas. Muitas horas. Rété acorda numa das muitas camas da enfer­maria do hospital com um sabor a serradura na boca e um péssimo pressentimento.

Não se lembra de nada do que aconteceu para estar ali. Foi, com certeza algo de terrível! Algo assombroso! Ele não quer saber nada do que quer que tenha acontecido! Há alguns anos, ele leu uma obra dum tal Bram Stoker, em que um personagem tam­bém tinha acordado em situação idêntica! Sem se lembrar de nada!

E se ele também enfrentou o Drácula? O Nosferatu? É bem capaz! Também deve ter tido uma febre cerebral como o tipo do livro!

— Ai meu Deus, ai Nossa Senhora! — pensa o Rété aterrorizado — Eu enfrentei o Nosferatu em pessoa e sucumbi! Ai obrigado Senhor por me teres aqui vivo!

Mas, para ter certeza, Rété passa o polegar pelos dentes caninos para ver se algo mudou. Também levanta os lençóis para ver se está tudo no sítio.

Graças a Deus que sim. Rété já pode respirar um pouco mais aliviado. Entretanto entra a enfermeira de serviço na enfermaria.

— Olá, bom dia — diz a enfermeira.

Rété tenta murmurar algo mas está demasiado fraco para falar. Depressa a enfer­meira tratou de lhe explicar de que quando chegou ao hospital estava em estado de choque e que só agora deu sinal de vida.

Meu Deus! Tudo bate certo com os acontecimentos verídicos que aquele tipo es­creveu! Cruzes santíssimas do céu! Rété está aterrorizado. Não sabe o que fazer! A enfermeira apercebe-se da sua inquietude e informa-o de que a sua família estaria de volta em pouco tempo e que já podia ir com eles. Era só o tempo de recuperar algumas forças.

Nesse momento, na altura em que a enfermeira disse que ia ter alta dentro de pouco tempo, Rété sente um arrepio na espinha tão forte que até lhe fez comichão nas unhas dos pés!

Ele vai encontrar-se com o causador da sua vinda para o hospital outra vez! De certeza! Mas ele não quer! Tem medo! Tem muito medo! Sente o pânico a subir-lhe e a apoderar-se do seu espírito. Tenta sair da cama, mas está muito fraco. Assim não tem outro remédio senão esperar pelo destino. Pelo seu fado. Pelo karma...

Adormeceu. E adormecido continuou durante muitas horas.

De repente...

— Olha, olha! Parece que o mariquinhas já acordou — grita o senhor Rota num tom trocista virado para o filho.

— Q... quê? — murmura Rété ainda estremunhado.

— És mesmo parvo! Com as tuas fitas até assustaste a menina Petrolina!

— Não. Não. Nãããããããããããão. NÃÃÃÃÃOOOOOOOOO! Não pode ser!

O fado pregou uma partida ao Rété, muito maior do que ao meco do livro do tal Stoker!

O coração de Rété bate cada vez mais forte. As suas cápsulas supra-renais injec­tam por todo corpo a droga que retêm. Ele nunca teve uma injecção de adrenalina como aquela que tivera agora! O cérebro desliga-se e como uma gazela tenta fugir do preda­dor, Rété tenta fugir da cama para evitar o destino.

— Caaaaalminha aí pá! Onde pensas que vais? Tens que ficar forte para a festa de noivado! Ai é! E esta noite vais visitar a tua futura esposa! Ai vais sim senhor!

Rété não tem como fugir. O seu pai aprisionou-o na cama e não há outra saída. Tem que ser. Infelizmente tinha que ser.

— Que Deus me proteja. — suplica Joaquim Rota, aliás, Rété.


*

Os Alka-Seltzer e os Konpensan reinam por toda a área da mezinha de cabeceira do pote de banha.

— Ai querido! Vê se paras quieto na cama! — murmura a senhora Barracuda.

— Estou com azia. Acho que vou comer outro Konpensan.

— Já é o quinto que comes, fofo! O que é que tens? Conta aqui à mamã. Tadinho do meu menino.

O gordo vira-se fazendo ranger todas as traves da cama e encosta a cara bola­chuda com a barba por fazer no ombro da esposa.

Óóó! Biduzinho! — diz o Barracuda com o polegar na boca — amanhã aquele tipo esquisito vai voltar lá à editora. E eu tenho mééédo!

Tadinho do meu queridinho. Olha eu tenho uma ideia! Vamos fazer assim: se o terrorista que quer fazer mal ao meu porquinho — diz a senhora Barracuda a cutucar o estômago dilatado do marido — o porquinho telefona ao seu amiguinho! Pronto!

— Que amiguinho? — pergunta o banhoso com cara de idiota.

— O polícia! Aquele que é o chefe!

— Siiiiim! É isso! Se ele tentar algo de suspeito eu entro logo em acção!

— Pooois! E assim o meu porquinho fica calminho e livra o mundinho dum ho­menzinho como estezinho!

— É isso mesmo o que eu vou fazer. Vou tomar uma atitude! Vou mostrar ao mundo que não sou nenhum covarde. — afirma num tom infantil.

— É isso mesmo! O meu porquinho está a aprender! Viva!

Depois de uma conversa melada como esta, o gordo do Barracuda e o pote de ba­nha que é a sua mulher, brincam com as banhas ondulantes abundantemente espalhadas por todo o corpo.

A seguir com muito custo e muita ginástica, o Barracuda lá conseguiu cumprir precariamente as suas obrigações conjugais.

O problema é que os dois são tão volumosos que qualquer actividade em con­junto torna-se em algo quase impossível. Além disso o gordo nunca teve muito jeito, o pobrezinho.


*

Raul olha mais uma vez para o molho de papeis que tem na mão e sorri. É desta que vai conseguir convencer o Barracuda a editar-lhe o trabalho. Um trabalho muito bom, excelente, segundo Raul. Um trabalho como nunca tinha feito.

Cheio de esperança, tal como na semana passada, mete-se na casa de banho para fazer um penteado digno para a ocasião.

Desta vez, pretende impressionar a menina Joana, aquela secretária jeitosa, que conheceu da outra vez que foi lá à Boa Esperança.

Pega no pente, no gel e mete mãos à obra.

Já passa hora e meia desde que Raul se meteu na casa de banho para se pentear. Meia hora depois sai finalmente de lá. Vestiu uma roupa mais desportiva para dizer bem com o cabelo. A seguir pega no trabalho e sai em direcção da paragem dos auto­carros.

Tem que fazer uma ginástica maior do que da outra vez ao passar na porta para não estragar o penteado — surpresa que preparou exclusivamente para impressionar a menina Joana.

Hoje, ao contrário das outras vezes, a viagem de autocarro até que foi razoavel­mente agradável, visto que o condutor de hoje é o fanhoso com cara de Adolf Hitler, que raramente passa dos vinte quilómetros por hora. A chocolateira conseguiu chegar até à paragem em frente da editora Boa Esperança, coisa rara, já que estes veículos de transportes colectivos importados em segunda mão da Alemanha, onde serviam para transporte de gado, empanavam sempre na subida íngreme que existe a seguir à ponte da cidade.

Raul sai do autocarro e fica uns instantes a olhar para a porta do edifício. Respira fundo e entra na editora. De relance, Raul repara que aquele aviso de oferta de trabalho que viu na semana passada ainda estava lá, mas não deu nenhuma importância a isso. É obvio que nenhum parvo o iria aceitar, visto que não passa de um trabalho para atrasa­dos mentais.

Automaticamente, Raul dirige-se para o escritório do Barracuda. Já sabe o cami­nho de cor.

À entrada do gabinete vê a menina Joana sentada na secretária a limar as unhas. Sente um calor a subir-lhe à cabeça por voltar a vê-la. Ela ainda não reparou nele, já que está demasiado concentrada no seu trabalho e portanto, Raul foi obrigado a entrar em acção. Aproxima-se dela e gagueja:

— Ó-olá.

A menina Joana levanta os olhos e vê o Raul todo vermelho.

Mas que giro, — pensa ela! Ele hoje vem com um penteado diferente! Muito mais original do que o outro!

— Raul! Que bom vê-lo de novo. Não se importa que eu o trate pelo seu primeiro nome pois não? É que eu não gosto de tratar pelo apelido uma pessoa tão jovem e tão especial, sabe?

A menina Joana volta a fazer aquele sorrisozinho malicioso e a piscar o olho ao pobre Raul.

Ao ver-se naquela situação, ao aperceber-se de que ela está a atirar-se a ele, Raul perde a respiração. Quer respirar mas não se lembra como se faz!

— Está bem? — pergunta a menina Joana, preocupada ao ver o Raul a ficar roxo.

De repente o gordo do Barracuda sai do gabinete. Devido ao odor a sovaco ultra penetrante exalado pelas axilas do banhoso a entrar pelas narinas do Raul, este cheiro nauseabundo tratou de por o sistema respiratório do rapaz outra vez em funcionamento.

— ÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍK — guincha o pote de banha ao ver o seu pior pesadelo.

Raul, muito solenemente, cumprimenta o Barracuda com uma vénia. Ao ver isto, o Barracuda quase tem um enfarte. O cabelo do Raul, hoje está todo puxado para cima e no topo da cabeça, formando uma espécie de espeto. Era assim que o Raul queria impressionar a menina Joana! Demonstrando com o cabelo a sua virilidade, mas ao que parece, ele só conseguiu impressionar o javali que está branco como a neve a implorar para não lhe fazerem mal.

A menina Joana e o Raul estão estupefactos. O Barracuda está agora de joelhos com as mãos na cara a implorar para que o Raul não o espetasse.

— Mas senhor Barracuda, eu só vim apresentar o trabalho que me pediu!

O parvalhão olha para o Raul com cara de burro. A seguir levanta-se com muito custo, fazendo estalar os pobres joelhos. Já de pé compôs-se.

— Oh! Mas claro! Queira desculpar esta minha pequena dor de cabeça — diz o ignóbil a tentar disfarçar — por favor entre para o meu gabinete e espere lá uns segun­dinhos que eu tenho que tratar de um pequeno assunto.

Raul entra no gabinete e instala-se. Olha em seu redor e repara que num canto da sala está um cavalete. Da outra vez não reparou nele. Aproxima-se para ver melhor a tela que está lá a secar e tem um arrepio.

— Jesus! — estremece — afinal é ele que comete estas barbaridades!

Desta vez, a obra é de Salvador Dali. É o seu quadro mais famoso. “A Persistên­cia da Memória”. Este está a ser pintado com aquelas canetas de tinta fluorescente e giz de cor! É pirosíssimo! O parvalhão tem todo o direito de pintar o que quiser, só que, o desgraçado tem um gosto que era capaz de acordar um morto!

O artista não sabe que os relógios que estão na obra de Dali são analógicos, por­que os que estão no quadro dele são digitais.

Raul abana a cabeça e encolhe os ombros. Talvez estivesse a ser um bocado duro com o Barracuda. Mas pronto. Que lhe fazer?

Entretanto, o aspirante a aprendiz de pseudo-semi-artista estava a fazer um pe­queno telefonema a uns amiguinhos dele. Assim já se sente mais seguro. Logo de seguida volta para o gabinete e senta-se na sua cadeira corajosa.

— Ãããh, vamos lá ver a sua obra. — diz o gordo desconfiado.

Raul entrega-lhe o molho de papéis e ele começa a analisá-los enquanto bebe Coca-Cola e limpa os sovacos.



O pobre Barracuda ao acabar de ler a história sente-se ainda pior do que da outra vez. Olha para o copo de Coca-Cola que tem na mão e sente que vai vomitar.

Tenta a toda a pressa levantar-se da cadeira para ir à retrete mas não consegue! Tal como uma mangueira de alta pressão, Barracuda dispara o seu vómito implacável em direcção á camisa do Raul.

— ..........bb.........! — diz Raul.

Pois é. A sorte quando vem, vem toda de uma vez. Sou eu que o digo.

É que logo a seguir ao banho de batatas fritas de presunto e Coca-Cola, entram na sala uns senhores fardados. Estes senhores algemaram Raul sem dizer uma única pala­vra.

Raul pergunta o que fez, mas os senhores não respondem. Limitam-se a arrastar o Raul para uma esquadra.

Lá fazem-lhe umas perguntas esquisitas. Perguntam-lhe porque é que ele queria pôr uma bomba no gabinete do ilustre senhor Barracuda.

Ele diz que não sabe de nada e que nunca faria tal coisa.

Os senhores, chateados, dão-lhe uma tareia e prendem Raul por ser um dos sus­peitos de causar o pânico geral num hipermercado dando um falso alarme de uma bomba.

Raul está agora injustamente cadastrado.

Passou o resto do dia numa jaula, com a camisa toda empapada de vomitado do Barracuda.

Aquele misantropo e os seus amigos não perdem por esperar.

A vingança vai ser subtil...

*Fim da Parte 1*

domingo, julho 29, 2007

sexta-feira, julho 27, 2007

Os Inóticos, Parte 1 Capitulo 6

*

Rété chegou a casa para jantar. Chegou do seu novo emprego que o senhor Mar­tins lhe arranjou e os seus pais ainda não sabem que ele trabalha lá. É que na hora do almoço, Rété comeu sozinho. Não estava ninguém em casa e então teve que improvisar o seu almoço com um magnifico prato de sardinhas fritas em azeite e tomate, mistura­das com umas natas supremas acompanhadas de umas fenomenais couves cozidas em leite de cabra. Uma receita secreta, inventada por ele próprio e de que tem bastante orgulho!

À tarde no seu trabalho não houve nada significante, excepto, naquela vez em que o senhor Martins o mandou pegar na caixa das tachas e uma centopeia lhe subiu pelo braço acima. Deu um salto e entornou as tachas pela oficina toda. Teve que andar a catá-las a todas com um íman.

Agora Rété está cheio de medo com a reacção que o seu pai vai ter quando souber o que se passou na mercearia! De certezinha absoluta que alguém já veio de propósito a casa encher os ouvidos da família com mentiras idiotas como já é costume.

Rété respira fundo, aperta o nariz, passa a mão pelo cabelo e entra na sala de es­tar. Lá já estão os seus pais e irmãos sentados à mesa prontos para começar a comer o caldo de couves que fumega nas suas malgas.

— Ó-olá paisinho, olá mãezinha, olá manos, então como é que estão? — pergunta Rété a tentar fazer o ar de quem não quer nada.

Fez-se um silencio aterrador e sinistro. A sua mãe diz:

— Anda comer a sopa.

Rété, com muito jeitinho vai-se sentar à mesa e serve-se do caldo de couves que está numa panela no meio da mesa mesmo ao lado do arroz de bacalhau e da travessa de pataniscas.

— Já arranjei emprego paisinho! — diz o Rété de mansinho.

— Ouve lá. O que foi que eu ouvi dizer sobre ti na mercearia do Artur? — diz o senhor Rota num tom muito severo.

— Nada de importante papá! Aconteceu só um imprevisto com uma minhoca, mas nada de sério! Eu arranjei lá emprego, mas depois saí porque arranjei melhor na oficina do senhor Martins e...

— Mas tu pensas sou parvo ou quê? Tu não sabes o que o povo anda a dizer? Anda a dizer que tu violaste a senhora Raquel lá na mercearia à frente de toda a gente e a seguir ainda fizeste algo, que ainda não percebi bem, com o gelado da menina Petro­lina! — diz o senhor Rota a bater com a colher na mesa.

— Mas não! Mas não! É tudo mentira! Tudo invenção do povo que não tem nada que fazer! — chia o Rété já a choramingar.

— Parem já com isso! — grita a dona Ilda já sem paciência — Parece que não conheces o povo. Basta uma coisinha para fazer logo um escândalo! O que eles querem é estragar a nossa imagem!

Os irmãos do Rété comem a sopa sem ligar a estas discussões porque já eram diá­rias e já fazem parte da refeição. Mas, o Luisinho, o irmão mais novo vira-se para o Rété e pergunta:

— Ó Quim, é verdade que te vais casar com a menina Petrolina?

— QUÊÊÊ? — guincha Rété virado para o seu irmãozinho.

— Eu ouvi dizer que vais ter que te casar com a menina Petrolina!

— NÃO! — grita Rété apavorado a arranhar as bochechas com as unhas e os olhos arregalados.

— Olha que até é uma boa ideia! — diz o senhor Rota — Era a maneira de limpar o nosso nome e de fazer esquecer o povo sobre o que quer que tenha acontecido na mercearia. Amanhã vou falar com o senhor Artur para esclarecer tudo e vou-lhe propor este assunto do casamento. Já está na hora de te casares filho! E a menina Petrolina é um bom partido para ti.

— UUUUUUUUUUUUUUUU ÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀ ÌÌÌÌÌÌÌÌ ÀÀÀÀ ÌÌÌÌÌÌÌÌ ÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀ HÌÌÌÀ ÀÀÀÀÀÀÀÀ HÀÀÀÀ HÌÌ ÀÀÀÀÀÀ ÈÈÈÈÈÈÈÈÈÈÈÈÈÈÈ ÌÌÌÌ ÀÀÀÀÀÀÀ ÀÀÀÀÀ ÀÀÀÀÀ UUU UUUUUUUU ÈÈÈÈÈÈÈÈ ÌÌÌÌÌ ÀÀÀÀÀ ÀÀÀÀÀÀ ÀÀÀÀÀÀÀÀ ÀÀÀÀÀ ÀÀ ÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀÀ! — grita Rété.

Rété sai da mesa apavorado e foi-se fechar no quarto. Tira a roupa, veste o pijama com o sapo Cocas e mete-se na cama com a almofada em cima da cabeça a chorar de­salmadamente.


*

Já é de manhã e como de costume, o senhor Rota é sempre o primeiro a levantar-se lá em casa. Ele hoje tem que esclarecer um assunto importante com o senhor Artur. Ia ver se arranjava uma noiva para o filho. O seu maior medo é que o seu filho seja maricas, por isso, pretende vê-lo casado o mais depressa possível.

O senhor Rota sai de casa antes de tomar o pequeno almoço porque quer dar a boa nova, isto é, caso haja alguma boa nova, à sua família toda reunida.

Dirige-se à mercearia e encontra o senhor Artur a abrir o seu estabelecimento para receber mercadorias frescas como o pão ou o leite. Aproxima-se dele e dirige-lhe a palavra.

— Bons dias senhor Artur.

— Bom dia. — responde o merceeiro num tom seco.

— Eu precisava de falar consigo. Era necessário esclarecer uma coisinha...

— Ai sim? Eu acho que é preciso esclarecer muita coisinha! Se eu apanho o seu filho aqui outra vez não sei o que lhe faço! — responde o merceeiro com os dentes cer­rados.

— Ora é disso mesmo que eu queria falar.

— Poooois. — Cala-se por uns momentos. — Entre então porra!

Entram os dois para dentro da mercearia. O senhor Rota senta-se num banco que serve para sustentar as caixas de fruta durante as horas de expediente e fica à espera do senhor Artur que foi levar uma vasilha de leite ao armazém.

Enquanto espera repara com algum assombro, que o candeeiro do tecto abana como se houvesse um terramoto. A isso junta-se um ruído estranho, um barulho aba­fado que vem do andar superior. Estranhou e até pensou que se tratava de um terramoto, mas por mais incrível que pareça, o chão não treme! Portanto não pode ser nenhum terramoto! Aquilo tinha que vir de cima.

Entretanto o senhor Artur regressa à mercearia e dirige-se ao pai do Rété.

— O que queria então? — pergunta ele como se estivesse a fazer um grande fa­vor.

— Bem, eu queria que o senhor, ora bem, queria lhe pedir que desculpasse o meu filho. Eu soube que ele fez aqui asneiras ontem, mas o senhor sabe como é a canalhada destes dias! Só faz burricada! E depois quem fica mal é a família.

— Pois é, pois é. — diz o merceeiro com os olhos fixos no assoalho.

— Espero que não leve a mal, mas soube que a sua filha engraçou com o meu fi­lho.

— É parece que sim!

— Pois! E se os comprometêssemos em casamento? Se eles ficassem noivos? Dava-se uma grande festa, comprava-mos umas cinco pipas de tintol e convidávamos o povo todo! Era uma maneira de fazer esquecer o que aconteceu na sua mercearia e a vergonha que passei!

O merceeiro pensa por uns momentos. Passa a mão pelo cachaço, coça a cabeça e pede ao senhor Rota que não se vá embora. Sobe as escadas para o segundo andar e entra no quarto da filha, acordando-a de sobressalto. Em baixo, na mercearia o estranho som abafado que se ouvia e o misterioso candeeiro dançarino cessaram imediatamente a sua actividade sobrenatural.

No quarto da Petrolina, o senhor Artur tenta despertar a filha que ainda está es­tremunhada.

— Acorda filha, acorda! — diz o pai da menina, a abaná-la e a provocar-lhe on­dulações nas nádegas banhosas que estão escondidas por um corajoso lençol.

— O-o quê? Já não há mais batatas fritas de presunto? — disparata a filha do merceeiro ainda perdida com o sono.

— Não filha, não! Tu vais-te casar! Vais finalmente casar!

A rapariga não quer acreditar no que está a ouvir. Olha em sua volta e chega à conclusão de que está a sonhar. Mete a cabeça debaixo da almofada e enfia o polegar na boca.

— Acorda filha, acorda c´um catano! — berra o pai.

Não há maneira de acordar a moça. O senhor Artur beliscou-a, abanou-a e até lhe atirou à cara com um copo de água, que estava na mesinha de cabeceira. Chega até a pegar num alicate que ele tem guardado num armário do seu quarto e com ele beliscou as nádegas peludas da Petrolina. Ela apenas sorri e murmura algo que não se entende.

Então, o merceeiro tenta lembrar-se de como é que a sua esposa fazia para acor­dar a filha na altura em que ela tinha de ir para a escola. Puxou, puxou o mais que podia pela cabeça, mas não era capaz de se lembrar. Desloca-se então ao seu quarto e encon­tra a mulher ainda a dormir.

— Dá-lhe um encontrão e diz:

— Ouve lá! O que é que fazias para acordar a tua filha?

A esposa do merceeiro abre os olhos, olha para o marido e responde-lhe projec­tando milhares de perdigotos no ar.

— Afref um fafofe fe bafafas flifas fe flesunto e fega-lhe ao farif.

— METE A PUTA DA PLACA NA BOCA MULHER! — grita o marido.

A senhora pega na placa que está metida num copo de água, enfia-a na boca e re­pete que é preciso abrir um pacote de batatas fritas de presunto e chegá-lo ao nariz da Petrolina.

O senhor Artur assim fez e conseguiu despertar, finalmente a bela adormecida do seu sono profundo. Pôs a filha ao corrente da situação, mas esta mesmo assim não que­ria acreditar.

Enquanto devorava o pacote de batatas fritas, ouviu o senhor Rota a explicar-lhe o que pretendia. Convidou-a a ir tomar o pequeno almoço a casa dele, juntamente com o futuro noivo. Ela aceitou imediatamente e foi-se produzir para o acontecimento.

Mete-se no quarto e abre o guarda vestidos. Decide-se por pegar nuns calções de licra e num top. Acha que assim fica mais sexy. A seguir enche a cara de pó-de-arroz, para tentar esconder as espinhas e os furunculos, mas este só faz com que os pêlos da barba fiquem mais realçados. Pinta os lábios com um batom preto, olha para o espelho, faz uma pirueta e exclama:

— Úááuuu! Que brasa! Que mulher!

Por fim, já está pronta para ir tomar o pequeno almoço com o Rété, tal como a convidaram.


*

Rété ainda não sabe de nada. O que tinha acontecido na noite anterior já não pas­sava de mais um pesadelo rotineiro que até já esqueceu. Levanta-se da cama, estica os braços e as pernas para poder pôr os ossos no sitio, coça a pila, já totalmente curada daquela enrascada que teve com aquela minhoca peçonhenta e pega na roupa.

Veste-se lentamente e lentamente segue para a cozinha para tomar o pequeno al­moço.

Mal sabe ele o que o espera! O pobrezinho vai, de certeza, apanhar o maior susto da sua vida. Vai ter que passar uns maus bocados.

Entra na cozinha e sem reparar na visita, senta-se no lugar do costume. Como de costume cumprimenta a família.

— Rapaz! — diz o senhor Rota — então? — Não cumprimentas a tua noiva?

Rété tem um terrível arrepio na espinha. Afinal não tinha sido um pesadelo! O seu pai falou a sério na noite passada! O pobre rapaz, corajosamente, olha de esguelha e ao seu lado está a maravilhosa Cinderela Petrolina. Aquele top que traz vestido realçam aqueles seios peludos, horripilantes, pendurados e pendentes até ao umbigo cheio de cotão e bocados de comida. Os calções de licra deixam ver a massa impressionante de celulite que tem nas pernas, coisa que, quando estava completamente nua não se notava porque a camada de pelos distribuídos abundantemente ao longo do corpo escondiam certas particularidades. O batom preto sai-lhe dos lábios e contorna-os como um pneu por recauchutar. O cabelo todo empapado está cheio de bocados de pão e batatas fritas de presunto. Para rematar o conjunto, acrescente-se um cheiro terrível a sovaco, um hálito fétido a gordura de porco e um odor a urina rançosa, já fermentada vinda de al­gum lado impossível de localizar!

— ..., ... ,... — pensa Rété.

Perante semelhante coisa, Rété apenas tem tempo de olhar em frente com um olhar de puro terror na profundidade do seu olhar e de cair para o lado como uma ár­vore quando é abatida.

E fica estendido no chão. Completamente inerte. Imóvel.

quarta-feira, julho 25, 2007

Os Inóticos Parte 1 Capitulo 5

*

Raul está em casa a tentar decidir qual a historia que iria apresentar ao editor na semana que vem. Estava indeciso sobre uma que ele tinha escrito à tempos acerca dum rato que, no final, a moral da história remetia para as crianças deixarem de comer do­ces. Ou então, outra sobre um menino que não fazia os trabalhos de casa. É uma tarefa difícil, porque ambos os trabalhos são realmente bons!

A barriga de Raul já está a dar horas. Então o dono da barriga acha que já são ho­ras de comer.

Esgueira-se até à cozinha, abre os armários à procura de alguma coisa que encha o bandulho mas a única coisa que encontra é uma caixa de corn flakes com uma barata morta lá dentro. Raul detesta corn flakes e aquele pacote já estava lá antes da sua famí­lia ter tido o acidente.

Decide então que tem de ir ás compras. Vai ao seu quarto trocar o seu fato do luxo por umas calças de ganga e uma T-Shirt toda coçada.

Depois vai à casa de banho. Despenteia o cabelo todo com as mãos e volta a penteá-lo de novo com o seu pente predilecto. Pôs o cabelo da parte de cima de forma a que ficasse todo para a frente e que na testa enrolasse para trás fazendo assim uma es­pécie de tubo. Nos lados, puxa o cabelo para trás para dar um ar sofisticado. Com este penteado, Raul, quer dar a entender que está numa fase tensa — o facto do cabelo estar para a frente — mas, de uma forma intelectual, tal como significa a terminologia da sua testa. O facto do cabelo dos lados estar para trás, significa que, está com pressa de atin­gir uma resposta, ou um fim, de que o cabelo da parte superior pretende representar. Sai de casa e vai a um hipermercado que há lá perto. Entra no edifício através das portas automáticas, coisa que Raul acha engraçado.

Um dia ficou uma tarde inteira a brincar com a porta, a vê-la a abrir e a fechar. Ás vezes, por causa do penteado, a porta funcionava mal. Era devido ao formato que o cabelo tomava fazendo uma espécie de camuflagem aos raios infravermelhos emitidos por aquele aparelhozinho que tem por cima das portas.

Bem, mas hoje a porta funcionou ás mil maravilhas. Uma vez lá dentro, Raul de­cidiu dar uma volta pelo hipermercado para ver se via algo de interessante. Passou, naturalmente, pela secção dos produtos de cabeleireiro, área já bem conhecida e con­trolada por ele. A seguir dirige-se à secção alimentar e repara nas prateleiras das garrafas de Coca-Cola. Só há uma! É a ultima do stock inteiro do hipermercado! Raul gosta de Coca-Cola e quer levar uma garrafa para casa. Mete a mão ao bolso à procura da carteira e MALDIÇÃO! Tinha-a deixado nas outras calças! Está teso e não pode deixar a garrafa ali, assim, desprotegida, à mercê de que alguém se apodere dela!

Raul tenta achar uma solução. Roubá-la nem pensar! A garrafa é muito grande e não a pode esconder, aliás, Raul é incapaz de roubar algo, mesmo que seja a um ladrão! Então de repente, sente que tem uma ideia luminosa. Certifica-se de que ninguém está a olhar para ele e sem ninguém reparar esconde a garrafa por baixo da estante. Assim está protegida de qualquer ranhoso que se possa apoderar dela. Raul olha mais uma vez a ver se alguém o tinha visto a esconder a garrafa e sai apressadamente do hipermer­cado.

Enquanto anda, Raul aproveita para pentear o cabelo todo para trás tipo conde Drácula. Espera que assim fique com a cabeça mais aerodinâmica. É que com uma me­nor resistência do ar no cabelo tem probabilidades de chegar mais rapidamente.

Foi até casa a correr para pegar a carteira. Pelo caminho cruzou com as duas al­coviteiras que se benzeram quando ele passou por elas. No regresso ao hipermercado, Raul já está muito cansado e tem de parar para descansar. Enquanto descansa, tenta decidir qual das histórias deve apresentar ao editor. Talvez decida fazer alguma coisa nova! Iria com certeza ter alguma ideia até ao fim do dia.

Já mais descansado, continua o caminho até ao hipermercado.

Ao chegar à secção da comida, qual é o seu espanto, quando vê um rapazinho, um puto ranhoso a espreitar para baixo da prateleira mesmo onde Raul escondeu a preciosa garrafa de Coca-Cola. Ora! É preciso ter azar! Aquele bisbilhoteiro que a esta hora de­via estar a dormir a sesta acabou por descobrir a garrafa! Raul reage logo. Dirige-se a correr para a criança a gritar:

— LARGA JÁ ISSO PÁ! É UMA BOMBA!

As pessoas que estavam nas redondezas ouviram Raul a gritar e entraram em pâ­nico. É uma algazarra geral com pessoas a correr como gatos com aguarrás no cú, a tropeçar e a deitar os produtos ao chão. Quem não se deixou impressionar foi o rapazi­nho que aperta a garrafa contra o peito.

— Dá cá isso já! — ordena Raul.

— Não!

Raul já está a ficar enervado! Pega no pente e põe o cabelo todo para a frente. Volta a dizer ao rapaz:

— Dá-me isso já! Fui eu que guardei isso ai!

— Não dou! Você é feio! — diz a criancinha com os olhinhos cheios de lágrimas e a fazer beicinho.

Ao ver a criança a chorar, Raul fica de coração partido. Ele adora crianças e gosta de as fazer felizes, mas não quer prescindir da Coca-Cola.

Pega novamente no pente e põe o cabelo todo para cima. A seguir faz um tótó com um elástico cor de rosa e a figura do pato Donald.

Este é o seu penteado de concentração intelectual.

Imediatamente, como um relâmpago, uma ideia assalta-lhe o cérebro. Uma ideia de como fazer com que a criança lhe entregue a garrafa sem chorar. Põe-se de joelhos, chega-se ao ouvido da criança e fica pelo menos cinco minutos a falar com ela.

Ao fim desse breve período de tempo, o rapazinho entrega imediatamente a gar­rafa de Coca-Cola ao Raul e foi ter com a mãe, que já estava à procura dele.

Raul teve uma grande ideia. Uma ideia grandiosa! Megalítica! E ia fazer dela o seu próximo sucesso!

Vira-se para trás e rapara que o hipermercado está estranhamente deserto. O chão está coberto de produtos higiénicos, comida, garrafas partidas, sapatos e carrinhos de compras abandonados.

Raul fica admirado mas não liga. Vai andando a ver se encontra alguém para po­der pagar a sua aquisição, mas não vê ninguém. Tira quinhentos paus do bolso e deixa-os em cima da caixa registadora para pagar a Coca-Cola e um peixe em que entretanto tinha pegado. Dirige-se para a porta e sai calmamente.

No caminho de regresso a casa vê pelo menos três carros da polícia a grande ve­locidade, seguidos de uns forgões pretos com uns letreiros escritos na parte lateral. “BRIGADA DE MINAS E ARMADILHAS”. Carros e forgões dirigem-se para o hi­permercado. Raul não dá grande importância a isso, portanto pega mais uma vez no seu pente e penteia o cabelo com o clássico penteado de risco ao lado. Este é o seu pente­ado de passeio. Também não era muito saudável passear pelas ruas com o penteado de concentração intelectual.


*

Barracuda chega hoje mais cedo a casa. Teve um dia horrível por causa daquele tipo com a poupa esquisita que escreve histórias piores do que as torturas da Santa In­quisição. Está estafado e terrivelmente deprimido.

A senhora Barracuda, uma mulher gordíssima, que faz com que o seu marido pa­reça uma top model, está sentada no sofá com papelotes no cabelo. Ela repara no marido com um ar deprimido e pergunta-lhe, enquanto devora um pacote de batatas fritas de presunto:

— O que tens fofo?

— Ai, tu não sabes o que me aconteceu lá no escritório — diz Barracuda a aper­tar os olhos.

— Óóó, tadinho! E o que é que se passou? Senta aqui à minha beira que eu faço uma festinha ao meu gatinho.

— Ííííí! Por favor não me fales de gatos que dás comigo em doido — grita aterro­rizado.

— Mas afinal o que se passou?

Barracuda senta-se no sofá e abre um pacote de bolinhas de queijo fritas que co­meça imediatamente a dizimar.

— Foi um tipo! Provavelmente um terrorista que procura ganhar dinheiro, para provocar algum atentado, ás custas de umas histórias horríveis que escreve e que julga adequadas para crianças! Tenho a certeza de que ele tem um plano! Um plano para impregnar o cérebro das criancinhas com as suas barbaridades escritas para que um dia mais tarde, as mentes puras e inocentes das criancinhas reajam instintivamente, se­guindo o seu subconsciente retorcido pelas terríveis mensagens escritas nas entrelinhas das histórias e que por fim se juntem à sua causa. — fala Barracuda enquanto come as bolinhas de queijo e limpa os sovacos com um lenço já todo encardido.

— Meu Deus! — suspirou a senhora Barracuda ao mesmo tempo que mandou um arroto estridente.

— E isto não é tudo!

— Não?

— Não! O tipo vinha com uma poupa estranhíssima. De certeza que a utilizava para levar qualquer arma ou até mesmo uma bomba camuflada atrás do cabelo!

— Horrível!

— Calma que isto ainda não acabou. Para a semana ele vai estar de volta!

— E como é que deixas-te isso acontecer? — perguntou a senhora Barracuda in­trigada.

— Eu já te disse! O tipo vinha com uma poupa que estava de certeza armadi­lhada! Se eu recusasse o seu pedido de comparecer na próxima Sexta-feira eu estava agora feito em picadinho!

Barracuda levanta o rabo de lado e solta um gás. Caso este gás fosse usado em guerra, seria imediatamente proibido pela convenção de Genebra.

A seguir decide dormir um sono antes de jantar, para tentar esquecer o terrorista que tanto lhe aterroriza a alma.


*

A menina Joana vive sozinha num apartamento no centro da cidade que o seu pai lhe comprou para se instalar perto da editora. O seu pai, um magnata, é um produtor de desenhos animados, já bastante bem reputados no estrangeiro e detentor de vários pré­mios.

A sua filha decidiu tirar o curso de secretaria executiva, só por querer ter uma profissão e esta agrada-lhe imenso. Tirou o curso numa das melhores faculdades do país e está agora a estagiar na Boa Esperança. Lá não há muito que fazer, portanto está a adorar esta coisa de trabalhar.

Ela hoje chegou a casa um pouco mais cedo do que o costume porque não tinha que fazer, já que o seu patrão, o gordo do Barracuda, se foi embora mais cedo por mo­tivos suspeitos. Aproveita para tomar um banho de imersão naquela banheira gira que faz bolhinhas e que fazem cócegas.

Foi à casa de banho e encheu a banheira com água (obviamente). A seguir juntou-lhe os sais e meteu-se na banheira cheia de bolhinhas para relaxar do árduo dia de trabalho.

Aquele tipo do cabelo esquisito não lhe sai da cabeça. Há algo de especial nele, algo que o faz diferente dos outros. Isto agrada-lhe muito. Já está farta de tipos vulga­res, chatos, parolos que só sabem falar de futebol e com a mania que são uns machões sedutores mas que não passam de uns playboys rurais.

Tem de o voltar a ver. Sabe que ele tem de voltar à editora e isso deixa-a radiante e na expectativa.

Como será o penteado da próxima vez?

segunda-feira, julho 23, 2007

Os Inóticos Parte 1 Capitulo 4

*
Rété saiu de casa para procurar emprego. Se voltar para casa à noite sem ter ar­ranjado algum serviço, está tramado. O seu pai foi bem claro.
“Se chegas à noite sem teres arranjado emprego, expulso-te da família!”
Rété não sabia por onde começar, portanto foi dar uma volta pela aldeia, a ver se encontrava algo.
A aldeia é constituída por uma rua central feita em calceta portuguesa e revestida a bosta de boi misturada com mato. Ainda é bastante frequente passarem por lá vários carros de bois por dia. Os animais domésticos como galinhas, patos e porcos andam à solta pelas ruelas estreitas que existem entre as casas em pedra emparelhada com umas janelas minúsculas com a função de dar um pouco de luz à escuridão eterna do interior dessas casas. A população da aldeia é quase toda constituída por agricultores bastante modestos com a excepção do padre, da professora, do taberneiro, do ferreiro e do mer­ceeiro. A escola da aldeia é um pequeno edifício branco que fica a uns cem metros da aldeia. Foi esta escola que Rété frequentou até à quarta classe e depois ao contrário dos seus colegas da aldeia, tirou o décimo segundo ano no liceu da cidade.
Existe também uma pequena igreja de estilo românico. Em seu redor existe um grande pátio onde decorrem as festas da aldeia. Esta, como qualquer outra, também conta com uma tasca. Fica num beco escuro e húmido. O estabelecimento nunca viu a luz do sol. O seu interior é dividido por duas paredes que divide duas partes. Uma em terra batida, toda enlameada de vinho tinto entornado pelos clientes. Este é o sitio pre­dilecto para as reuniões do C.J.S.R. (coligação dos jogadores de sueca reformados). A outra parte já é em tijoleira. Aí já tem uma mesa de bilhar, um rádio dos anos vinte que é um autêntico ninho de ratos e uma mesa de matraquilhos. O ferreiro tem uma oficina ao lado do cemitério, o qual fica a uns cinquenta metros da igreja. Este artesão, um velhote resmungão membro de honra do C.J.S.R. é o responsável pelos trabalhos que envolvem a sua profissão na aldeia. A mercearia do senhor Artur fica junto à casa do Rété. É a partir deste estabelecimento que as pessoas se abastecem do que necessitam. Os seus stocks são pequenos mas variados e pode-se encontrar lá desde tecidos novos vindos da cidade, passando pela comida e acabando nas maravilhosas novidades da tecnologia.
Rété decide ir pedir emprego ao senhor Artur, já que ele é seu vizinho e a sua mãe é uma cliente habitual.
— Bom dia senhor Artur.
— Olá Joaquim. O que é que te traz por aqui?
— Bem, eu precisava de emprego sabe, e se eu chegar a casa à noite sem ter ar­ranjado trabalho o meu paisinho expulsa-me da família!
Encostada no vão da porta que dá para o armazém está a Cinderela Petrolina, fi­lha do senhor Artur, a empanturrar-se com uma sandwich de queijo. Nunca ninguém viu criatura tão medonha. Por vezes, quando ela dá uma volta pela aldeia e por azar do destino se cruza com um carro de bois, os animais mais sensíveis entram em pânico e desatam a correr. Diz a má língua que foi ela que matou de susto a S´ Maria da Ponte, esposa do Senhor Martins, uma idosa que sofria do coração. Quando esta estava a sair da igreja numa noite cerrada onde tinha ido fazer as suas orações, deparou com a Pe­trolina de vestido branco vinda lá das bandas do cemitério. A velha não resistiu a semelhante visão e caiu redondinha no chão a espumar pela boca e agarrada ao peito.
A Petrolina tem um cabelo empapado de suor, pó, fumo e comida entre outras coisas. É vesga, tem a cara coberta de espinhas e ainda por cima tem uma pêra maior do que a do visconde do sítio do pica pau amarelo. O seu corpo rivaliza com o de qualquer suíno lá da aldeia. Os seus seios dão-lhe até ao umbigo e ainda por cima são peludos. As suas pernas arcadas são tão felpudas que um dia durante a festa anual da aldeia, a saia caiu-lhe mas ninguém notou, porque toda a gente pensou que ela estava de calças. Com esta descrição, eu procurei dar uma ideia do aspecto desta pobre rapariga.
A Petrolina faz um sinal ao pai para que ele entre no armazém.
— O que queres minha princesa? — perguntou o autor de semelhante atrocidade.
— Papá, por favor, dá um trabalho ao Joaquim. Assim talvez eu me consiga aproximar dele. — pediu a menina com uma voz mimada.
— Ora, era capaz de ser uma boa ideia, assim podia ser que arranjasses marido! Ele é bom rapaz e de boas famílias. É só pena que seja um pouco medroso e há quem ache que ele é maricas.
— Oh, papá, eu tiro-lhe o medo e faço com que goste de mulheres!
— De certeza meu tesourinho, de certeza. — disse a suspirar.
O senhor Artur voltou a entrar na mercearia e disse ao Rété que estava empre­gado lá no seu estabelecimento.
— Obrigado senhor Artur! E quanto ganho? Sabe, é que o meu paisinho vai-me perguntar logo isso!
— Vais ganhar vinte contos. — diz o merceeiro num tom de quem não estava para regatear.
— Está bem senhor Artur. E por onde é que começo?
— Vais começar por trazer para dentro aquelas caixas de hortaliça que estão lá fora.
Rété obedece de imediato. Sai e vê as caixas de madeira com couves tronchudas e outros tipos de vegetais. Inspecciona as caixas em busca de algum bicho infame que o possa assustar. Não vê nada. Baixa-se e apanha uma das caixas de couves pelas asas e carrega-a junto ao peito. Sem ninguém reparar, por entre as couves está uma lagarta peçonhenta, que entra corajosamente para dentro da camisa de Rété por entre os botões. Rété entra e pousa a primeira caixa e vai buscar as outras. Quando tem a segunda caixa à altura do tórax sente algo de estranho a entrar-lhe nas cuecas. Entra para a mercearia e de repente sente um ardor e uma comichão imensa. Atira com a caixa de couves à cara da senhora Raquel, esposa do Chico das Tripas e desata a tirar a roupa.
— Mas o que vem a ser isto? — pergunta a senhora Raquel, aflita a tirar as cou­ves que lhe tapam toda a cabeça.
— Áááááaáiiii, áááííííí! — responde Rété.
Petrolina, está na sala de estar a ver uma telenovela mexicana e a devorar um ge­lado de laranja. Ouve os gritos e vem a correr para a loja ver do que tratava tamanha algazarra. O senhor Artur que está no armazém à procura do que a senhora Raquel lhe havia pedido também ouve os gritos e vai ver o que se passa.
— Áááí, minha Nossa Senhora, está uma minhoca peçonhenta na minha linda pila! Ái, o que será de mim!
— Ííííííík, ele quer-me violar! — grita a senhora Raquel a tapar a cara com as couves.
— O quê? Mas o que se passa aqui? Que vem a ser isto? — pergunta o senhor Artur num tom desvairado com os olhos raiados de sangue e a morder a língua.
— Áíaíaí, a minhoca peçunhou-me a pila! Está toda inchada — diz Rété a chorar e a gritar.
Nesse instante entra a Petrolina na loja com o seu gelado de laranja na mão e vê o Rété de calças no chão e a segurar o seu sexo, que devido à alergia provocada pela mi­nhoca, aumentou pelo menos cinco vezes mais de tamanho. A Petrolina arregala os olhos e sorri.
— Filha! Não olhes! — grita apavorado o senhor Artur virado para a filha.
— Úáái, acudam! Alguém me valha que ele quer-me violar! Ai minha Nossa Se­nhora dos Aflitos, ai, Jesus! Ajudai-me — berra a senhora Raquel apavorada.
Rété vê o gelado que a menina Petrolina tem. Precipita-se sobre ela e arranca-lho da mão. De seguida esfrega-o onde mais lhe arde.
— Ahhhhhhh! Ohhhh! Que maravilha! Que frescura! — diz Rété com um ar de alivio.
Nessa altura, por causa dos gritos da senhora Raquel, já toda a aldeia se encontra na mercearia para ver o que se passa. Toda a gente olha para Rété quando o Sr. Artur interveio.
— Seu badameco! Que pensas que estás a fazer com o gelado da minha filha?
A Petrolina olha fixamente para o gelado e assim ainda lha dá mais gana de o comer.
— Tapa os olhos filhinha, tapa os teus olhinhos! — grita o senhor Artur desespe­radamente.
— Que nojice! — comentou a senhora Raquel, desiludida ao aperceber-se do que estava realmente a acontecer.
— Você está despedido, está a ouvir? DES-PE-DI-DO! — grita o Sr. Artur para toda a gente ouvir.
— Oh papá, não por favor, não o mandes embora! — suplica a menina Petrolina.
— Mando sim e é já!
Aos empurrões, o Sr. Artur expulsa Rété da sua mercearia, enquanto este, esfrega o gelado para lhe aliviar a dor.
Rété, já mais aliviado voltou a vestir as calças. A multidão que está à volta dele murmura e sussurram palavras obscenas entre eles, acerca de Rété.
Ele estava de novo sem emprego. Lembrou-se outra vez das palavras terríveis do seu pai e estremeceu. Por sorte o seu pai estava a trabalhar no campo, a mãe foi levar o Ruisinho e o Chiquinho ao dentista e o resto dos seus irmãos estão na escola. Se o seu pai tivesse presenciado o ocorrido expulsava-o da família logo na hora! E se não ar­ranjar trabalho até ao fim do dia a situação será idêntica, portanto voltou logo à procura de um biscate qualquer. Atravessou a multidão que olhava para ele de boca aberta e seguiu caminho para a oficina do senhor Martins. Talvez o ferreiro da aldeia tenha al­gum trabalho para ele. Chegando lá, encontra o velhote a ferrar o burrico que pertence ao padre. Este é o meio de transporte do vigário para dar as suas voltinhas pela aldeia.
— Bom dia, senhor Martins — diz Rété timidamente.
— O que queres daqui rapaz? — pergunta o velho atarefado.
— Bem, eu estava a precisar de um trabalhinho, então lembrei-me de que o se­nhor era capaz de precisar de ajuda!
O padre que está a observar o trabalho do ferreiro interveio na conversa.
— Meu filho, é verdade, aquilo que eu ouvi dizer acerca de um certo ocorrido na mercearia? É verdade que tu querias violar a senhora Raquel? Oh, meu filho! Com quem tens andado? São essas companhias que estragam tão boa alma — diz o reve­rendo a olhar para o céu com uma mão sobre a cabeça de Rété e a outra erguida para as alturas.
— Mas, mas, isto é tudo uma mentira senhor padre! É tudo uma grande mentira! Eu nunca quis violar a senhora Raquel!
— Então meu filho, vais dizer que o povo mentiu?
— O que aconteceu foi um acidente! Entrou-me uma minhoca peçonhenta para as calças, pessunhou-me todo e não aguentei! Tive que tirar as calças para me poder ali­viar! — responde Rété todo aflito.
— Ai, meu filho, eu bem sei o que isso é! Um dia entrou-me uma vespa pela ba­tina acima...
— Então é sempre verdade que o senhor padre não usa cuecas! — afirma Rété instintivamente sem pensar.
QUE DIZES? — berra o padre.
O senhor Martins que não está a prestar atenção à conversa, acabou o serviço que estava a fazer com o animal do padre.
— Senhor padre, o seu animal está pronto.
O padre, que ainda está a admoestar Rété olha para o ferreiro e aproxima-se dele. Pergunta quanto é que deve, paga e leva o burro por uma corda amarrada ao pescoço. Antes de partir ainda deu mais uma reprimenda de meia hora ao Rété.
Rété retoma o assunto que o tinha levado lá.
— Então senhor Martins? O que diz?
— O que digo o quê? — pergunta distraidamente o ferrador, enquanto recolhe as ferramentas que estão espalhadas pelo chão.
— Pode dar-me emprego aqui?
— Tu queres emprego?
— Sim.
— Não sei.
— Oh, vá lá senhor Martins. É que se eu chego a casa logo à noite sem trabalho o meu pai expulsa-me da família!
— Ai sim?
— Sim!
— Então o que queres daqui?
Rété já está a ficar desesperado.
— Quero emprego senhor Martins, EMPREGO!
— Está bem.
— Óptimo, muito obrigado senhor Martins, muito obrigado. E quando é que posso começar?
— Começar o quê?
— A TRABALHAR! — grita Rété já quase a chorar.
— Que dia é hoje?
— Sexta-feira.
— Então aparece aqui logo ás duas horas da tarde.
— Está bem senhor Martins. Até logo.
Rété já está mais sossegado. Aquilo já é um emprego e como só começa ás duas horas , ele não sofre o risco de ser despedido antes da hora do almoço. Assim quando chegar a casa para comer já pode dizer ao pai que está empregado.
Já é quase meio-dia e Rété foi para casa almoçar.

sábado, julho 21, 2007

Os Inóticos. Capitulo 1 Parte 3

*

Raul chegou finalmente à editora Boa — Esperança. Entra para a recepção e senta-se num banco a descansar. O autocarro teve uma fuga de óleo devido a uma curva mal feita pelo piloto, quero dizer, o motorista. Este levou o chaço para cima do passeio, bateu numa boca de incêndio, raspou com parte inferior e partiu o cárter. O pobre ho­mem não parava de dar murros na cabeça com as luvas do Fangio e dizia:

— Aaaaiiiii, como é que eu falhei aquela chicane!

O facto é que o autocarro ficou empanado em cima da ponte suspensa que atra­vessa o rio e Raul teve que fazer o resto do caminho a pé. A editora ficava a uns quinhentos metros dali mas sempre a subir.

Enquanto descansa Raul examina a recepção do edifício. É particularmente feio! Tem as paredes pintadas de cor-de-rosa e um quadro, uma imitação foleirissima dos quadros neoplasticistas, que não passava de um monte de quadrados e rectângulos to­dos mal construídos. Violava todas as regras deste estilo. Tem os quadrados pintados de azul e roxo e no fim está a assinatura que diz “Pitere Mandriam”.

Este quadro deprimente quase virou o estado de espirito de Raul e por pouco ia ter que mudar de penteado. Ao desviar os olhos daquela parolice, Raul repara que na parede ao lado está um placar de afixar recados e mensagens que diz “Oferta de Em­pregos”. Já mais composto Raul levanta-se e vai ler o lá está escrito. Não tem nada de interesse excepto uma oferta de emprego que diz: “Procuram-se pessoas com o mínimo de capacidades literárias, para serem mentores de alunos de um curso por correspon­dência publicado por esta editora.”, por baixo estava escrito a letras gordas “TRABALHO FÁCIL”.

— Bem, era capaz de ser interessante! — pensou Raul — Mas acontece que eu tenho grandes capacidades literárias e eu não quero andar a trocar correspondência com um parvo qualquer. Eu estou muito ocupado a escrever e além disso vou ficar rico com a venda das minhas lindas histórias para crianças!

Raul olha para o relógio e vê que já chegou a hora da sua entrevista com o editor. Empurrou uma grande porta de vidro escuro com as palavras “Boa Esperança” estam­padas bem no meio. Procura alguém mas a sala está deserta. Ao fundo encontra-se a mesa da secretária ou se preferirem, a secretária da secretária. Raul aproxima-se da mesa e vê um papel em cima do teclado do computador com a mensagem tradicional do “Volto já”. Em cima da mesa também está uma placa com o presumível nome da se­cretária. Menina Joana.

Olha em volta para apreciar a sala e vê numa das paredes um quadro de Van Gogh. Era a “jarra com doze girassóis”. Como era um apreciador de qualquer forma de arte, aproximou-se para o contemplar. Quando chegou mais perto pode notar que o quadro não é uma reprodução industrial, mas sim uma cópia. É uma cópia feita a mar­cador e falta um girassol, um pequenino que está virado para baixo na parte esquerda da jarra. As cores utilizadas são fluorescentes. No fundo do quadro ao contrário da obra original está a assinatura que diz “Bissente Bamgogue”.

Perante semelhante pirosice Raul gritou:

— Béééééééééé! Nossa Senhora! Que aberração! É mesmo parolo! É uma bode­guisse!

Entretanto, a menina Joana entra na sala e vê Raul com as unhas cravadas nas bo­chechas a blasfemar contra o autor da obra.

— Isso é um insulto ao Van Gogh não é senhor... — perguntou a menina Joana ao misterioso critico de arte.

Sem se virar, Raul respondeu:

— Senhor Pinha. E você tem razão! Isto nem para limpar o cú serve, porque o papel é muito duro e ainda por cima a tinta pode dissolver e ficamos... — de repente Raul vira-se e fica sem fala.

A visão da menina Joana deixou-o de queixo caído. Também perante qualquer mulher bonita, o Raul fica quase sempre sem fala e com a cara toda vermelha.

A menina Joana ao ver Raul especado a olhar para ela, com aquela poupa enorme, que parecia o escudo anti-bala do Aston Martin do James Bond e aquele queixo caído com a saliva a escorrer-lhe pelo pescoço abaixo perguntou-lhe:

— O senhor está bem?

— Grllghhããã!

— O quê? — disse a menina Joana sem perceber o que Raul estava a dizer.

Raul para evitar o embaraço, abanou a cabeça afirmativamente e com a mão es­querda puxou a boca para cima, já que o seu queixo tinha ficado encravado.

— Oh, ainda bem senhor Pinha — disse sorrindo — o senhor Barracuda está à sua espera no gabinete. Pode entrar.

Sem tirar o olhos da menina Joana, Raul foi à procura da porta, mas como não via por onde andava, mandou uma turra fenomenal na porta. A menina Joana sorriu para ele e piscou-lhe um olho. Perante isto Raul quase teve um colapso cerebral e deixou cair a pasta que leva debaixo do braço.

— Eh pá — disse Raul todo atrapalhado.

— Deixe que eu apanho.

A secretária entrega a pasta a Raul e este faz um sorriso forçado para parecer que está descontraído e entra na sala do editor a dizer adeus com a mão. Virou-se para den­tro ainda com a imagem daquela rapariga no cérebro e por pouco não tem mesmo um colapso cerebral. Nunca vira um homem tão feio nem tão gordo. Era careca, só com alguma penugem atrás das orelhas que tinha deixado crescer para pentear para o lado e desta forma tentar disfarçar as manchas rosadas que tem no crânio. Tem uma pêra fel­puda, brilhante, toda lustrosa devido ao suor. A sua camisa tem duas grandes rodelas molhadas debaixo dos sovacos.

Com coragem Raul foi-se aproximando e disse:

— Bom dia senhor Barracuda. Eu sou o Raul Pinha. Aquele que vinha apresentar as histórias para crianças.

— Sim, sim eu sei — respondeu Barracuda sentindo-se um pouco ameaçado ao ver aquela poupa monstruosa — Mostre-me lá a história que me trouxe para ler.

Raul abre a pasta e entrega uns papeis ao gordo.

— É só isto?

— É sim, mas com os desenhos tenho a certeza de que vai ficar muito mais inte­ressante.

— E de que trata essa história?

— Ah, é sobre um gato e uma menina. Ensina ás crianças que não se deve fazer mal aos animais.

— Estou a ver...

Barracuda levanta o enorme rabo da cadeira que heroicamente o tem suportado ao longo dos anos, e começou a andar pela sala constantemente a limpar os sovacos com um lenço de bolso e a beber Coca-Cola.

— Vamos lá ler a sua história, senhor Pinha.



Era uma vez um gato.

O gato estava cheio de fome e andava à procura de comida. Ia ele todo lampeiro pela rua abaixo quando viu uma menina que tinha comido muito a vomitar. O gato chegou-se ao vomitado e lambeu tudo. Só que a menina tinha comido uma comida muito picante e o gato ficou cheio de sede e com a língua a arder. Correu quanto pode e avistou uma casa com uma janela aberta. Espreitou para dentro e viu uma panela ao lume. Correu para a panela e debruçou-se na borda para beber a água. Entretanto apareceu a menina e empurrou o gato para dentro da panela de água a ferver com batatas. Então a menina fecha a panela que era de pressão e deixa o gato lá dentro a ser cozinhado. Ainda se ouvia o gato a miar e a arranhar a panela debatendo-se o mais que podia para poder sobreviver e sair daquela panela de pressão com agua a ferver e batatas, mas a única pessoa que ouvia os gemidos do gato era a menina que se ria imenso do gato.

Horas depois chegou a mãe da menina. Abriu a panela, e sem ver, despeja o conteúdo da panela numa travessa ficando o gato por baixo das batatas todas.

A mãe da menina leva a travessa das batatas com o gato morto por baixo para a sala porque é lá que estão os convidados. Os convidados começam a tirar as batatas e vêem o gato esparramado com a língua de fora, os olhos virados e o pêlo a sair todo agarrado ás batatas.

Perante isto os convidados vomitaram todos as torradas com patê e queijo fundido e o vinho verde que tinham comido como aperitivo na carpete persa que estava por baixo da mesa. A mãe da menina tinha muito orgulho nesse tapete porque o tinha comprado a um mouro que lhe tinha pedido cem contos pelo tapete e lho tinha deixado por cinco.

A menina riu-se tanto que até lhe deu a volta à barriga e teve que ir à casa de banho com um ataque de diarreia.

À noite a menina foi dormir. Já passava da meia noite quando ela começou a ouvir uma coisa muito estranha ao lado da cama. Era como se estivessem a arranhar um quadro negro, ruído que ela conhecia muito bem, pois ela o fazia muitas vezes na escola só para destruir a paciência da professora, coitadinha. A menina olha para o lado e vê o fantasma do gato que ela tinha atirado à panela de água a ferver com batatas nessa mesma tarde! A menina volta a ter um fenomenal ataque de diarreia, mas este provocado pelo pânico que sentia naquele momento. O gato agarra a menina por um braço e num segundo desaparecem os dois e voltam a aparecer num sitio desconhecido. A menina estava agora dentro dum panelão com água a ferver e batatas. Ao seu redor estava o fantasma do gato a rir-se imenso mais uma multidão de demónios com a língua de fora, a lamber os beiços e a esfregar a barriga, juntamente com o fantasma da professora dela, coitadinha que teve uma trombose devido aos nervos que a menina lhe fez nas aulas.

fim.

— Então, gostou senhor Barracuda? — pergunta Raul ansioso por ouvir uma res­posta.

Barracuda está especado no meio da sala, branco como a cera.

Depois começa a ficar amarelo e a seguir, devido a um reflexo inato ocorrido no seu estômago, é obrigado a correr para a casa de banho com as bochechas inchadas. Passados dez minutos, Barracuda sai da casa de banho a tremer, com a testa suada e vai sentar-se na sua cadeira.

Então? — pergunta Raul já impaciente.

Bem... — Barracuda olhou para o Raul, teve um arrepio na espinha e pensou: — E se por trás daquela poupa enorme ele trouxesse alguma arma escondida ou quem sabe talvez até uma bomba? É que quem escreve coisas destas para crianças é capaz de tudo! Este tipo é um terrorista! — Ããããããh, bem, sabe, nós estávamos à procura de algo dife­rente, mais suave sabe? É que as crianças têm medo de fantasmas e demónios sabe?

Estou a ver. Mas eu tenho em casa histórias mais suaves! Se quiser eu venho mostrar-lhe outra.

Barracuda olha outra vez para a poupa do Raul, limpa o suor da testa e dos sova­cos com o lenço, bebe um golo de Coca-Cola e responde:

— Bem, ãããããããh, com certeza. O senhor pode voltar para a semana pela mesma hora se desejar.

— Fiche! Assim tenho tempo de preparar tudo. Muito obrigado senhor Barra­cuda.

Raul despede-se da bola de sebo e sai do gabinete. À saída encontra a menina Jo­ana na secretária a limar as unhas. Despede-se dela um bocado à rasca, enquanto esta lhe responde com um beicinho.


quinta-feira, julho 19, 2007

Os Inóticos, capitulo 1 parte 2

Já passava das nove horas e Rété, assim chamado por quem o rodeia, por ser um cagarolas de primeira, ainda não se recompôs dos pesadelos que teve na noite anterior. Tudo culpa das histórias horríveis que a sua avó conta aos netinhos, e Rété, apesar de já ter vinte anos, ainda tem mais medo do que os seus priminhos e irmãos mais novos.
Rété, aliás, Joaquim Rota vive desde a sua tenra infância numa aldeola perto da cidade. Partilha a casa com os seus pais e mais sete irmãos. Actualmente está desem­pregado, coisa que desagrada imenso ao seu pai. Mas, pobrezinho, o que ele mais quer na vida é ser detective. Tem no entanto um problema: medo dos ladrões!
Apesar de ainda estar abalado, Rété levantou-se da sua cama de ferro pintada de branco com uma trincha e com um colchão de molas que range toda a noite. Vestiu umas calças de ganga azuis e uma camisa branca com quadradinhos azuis e roxos. Saiu do quarto a pentear o cabelo com os dedos, facto este a que ele dava pouca importância e foi para a cozinha onde já estava toda a gente à mesa. A cozinha é de um estilo an­tigo, tradicional nas casas de agricultores do norte, com uma enorme lareira numa das paredes onde se penduram os chouriços e os presuntos, onde ficam vários meses a apa­nhar o fumo para secarem.
Rété, senta-se à mesa e cumprimenta a sua família.
— Bom dia Paisinho, bom dia Mãesinha, bom dia Ritinha, bom dia Ruisinho, bom dia Zézinho, bom dia Aninha, bom dia Rosinha, bom dia Chiquinho e bom dia Luisinho.
O seu pai, um homem de poucos abusos disse-lhe logo:
— Isto é que são horas de se levantar? Tu como irmão mais velho devias dar o exemplo aos teus irmãos ao levantares-te mais cedo!
— Mas paisinho, dormi muito mal! — disse Rété cabisbaixo.
— Andas outra vez com esses pesadelos das histórias que a tua avó te conta? É? — perguntou o senhor Rota num tom severo.
— É sim paisinho...
— Pronto! É o que eu temia! O meu filho é maricas!
— Não sou não paisinho — respondeu Rété quase a chorar.
— Vamos já acabar com isto! — ralhou a dona Ilda, a mãe do Rété — já nem de manhã se tem sossego ?
— Eu já sei um bom remédio para este filho transviado! — disse o senhor Rota.
— Eu não sou transviado! — guinchou Rété enquanto torcia um guardanapo com as mãos.
— Vamos já acabar com este chinfrim que eu já estou a ficar farta!
— Tu vais é trabalhar! O trabalho vai fazer de ti um homem e vais procurar tra­balho hoje mesmo. Senão já sabes o que te acontece!
— Mas paisinho, o senhor já sabe do meu problema de sinusite!
— Não quero desculpas. Vais procurar trabalho hoje mesmo!
— Sim paisinho, como queira.

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