A aplicação teórica de assuntos práticos e relativos á questão do ser adjudicado à alma do animal que nasce dentro de todos nós.

domingo, abril 30, 2006

O derradeiro destino de Rolando-30-Contos.

É de manhã e está calor.

Junto ao beiral da janela semi-aberta, um raio de luz é desviado pela curvatura da garrafa acastanhada de cerveja choca meio vazia que lá pára já faz mais de dois meses.

O pequeno foco de luz vai lentamente percorrendo o chão de tijoleira beije rota, enegrecida, cravada de beatas de cigarro retorcidas e esparramadas. Lentamente, passa indiferente por cima das revistas soft-porn que estão espalhadas junto ao sofá de napa beije, completamente encardido pelos suores e humores corporais do Rolando-30-Contos que dorme estendido no sofá, completamente nu.

Vai avançando lentamente, sobe o sofá e preguiçosamente percorre o corpo suado colado á napa. Passa á cara picotada pela barba por fazer, foca-se sobre a olheira negra do olho direito e insistentemente, como que por prazer mórbido de vingança da garrafa de super-bock por ter sido deixada meia vazia há tanto tempo, o raio de luz finca a pálpebra até começar a latejar.

Com um esforço sobre-humano, Rolando-30-Contos abre os olhos raiados e acorda.

Descola o corpo do sofá produzindo um ligeiro som de sucção e deixando para traz litros de suor que se vão acomodar e secar na napa do sofá formando aquela coisa castanha que nós já estamos habituados a ver nos teclados dos computadores, cambaleia até á retrete para vomitar.

De joelhos, com os cotovelos apoiados na tampa, segura com as duas mãos a testa e o cabelo enquanto começam os espasmos no estômago. Um mal estar apodera-se do seu corpo, as veias da testa começam a latejar e de súbito começa o festival.

Dura três minutos e no final, a sensação é de bem estar e alivio. Enquanto vai mandando umas cuspidelas para o fundo da retrete tenta lembrar-se do que se passou no dia anterior. E no dia antes deste. E no que passou também. Antes, antes, antes.



“Fodasse cum caralho!” berra o Rolando-30-Contos enquanto desce pela caixa de escadas da sua casa e da ex-futura-noiva “Já não posso mais! Já tou fartinho! Juro que nunca mais hei-de por os pés naquela casa!!! Nunca mais!”

Chega cá ao hall de entrada, dirige-se para a porta de saída e sai. “Aaah” um suspiro de alivio enche-lhe os pulmões. Mas por pouco tempo.

“Merda! Não acredito!” agarrado com uma mão á cabeça procura as chaves do carro com a outra em todas as partes da roupa e do corpo “Deixei a merda das chaves do carro lá em cima. Tenho que tocar á campainha.

Violentamente carrega na campainha até a ponta do indicador ficar branca. Cinco minutos depois vem a ex-noiva á janela. “Quié caralho?” com a voz abafada, Rolando 30-Contos comunica que tem que ir buscar uma coisa.

A ex-noiva, furiosa decide provocar “Só se tu disseres muito alto que te vais embora porque tens uma pila muito pequenina e fininha e não aguentavas mais de trinta segundos! Diz!!”

Rolando-30-Contos não estava mais para a aturar. Num acto de auto-humilhação frente á horda de vizinhos curiosos berra em desespero a mentira que ela queria que dissesse.

A porta abre. Sobe desesperado e pega na chave. Torna a descer. Derreado e exausto senta-se no chão junto ao passeio.

Dez minutos depois, lembra-se de súbito de algo extremamente importante.


“Eiiiii, esquecime da gilette! Que se FODA! Agora FICA! Não volto lá acima NÃO VOLTO!” enquanto puxa o cabelo de raiva, Rolando-30-contos lembra-se de quanto lhe é querida aquela gilette. Serviu á uns anos atrás para rapar o pelinho do extraordinário pipi da Mónica Bellucci. Diz ele que lhe foi pessoalmente oferecida mas as más línguas dizem que ele comprou aquilo no e-bay por cento e cinquenta euros. Más línguas. Más e invejosas.

Usa aquilo todos os dias, mas claro que a cabeça da lamina original está religiosamente selada em vácuo dentro duma caixa de cristal pousada num altar de mármore que se encontra no centro de um pequeno templo de madeira de cedro mesmo no meio de um jardim feng-shui. Pavões e aves do paraíso pairam em redor do templo enquanto os rouxinóis chilreiam odes melodiosas ao conteúdo da caixinha de cristal.

Todas as semanas, Rolando-30-Contos a vai adorar ao jardim que se encontra perto da casa. Jardim secreto, que só ele sabe onde fica atrás duma vedação disfarçada de galinheiro.


Decididamente, teve que voltar a engolir o orgulho. Por acaso engoliu a xicla que tinha na boca, causando-lhe um ligeiro desconforto.

Voltou a subir lenta e pesadamente os degraus revestidos a mármore branco. Lentamente foi-se lembrando de como aquele objecto é a sua mais importante posse. Sem aquilo, a cabeça da lamina não faz sentido.

Chega á suite onde dormia com a ex-noiva e dirige-se á casa de banho.

Não vê a preciosa gilette. Nem a mafarrica. Procura por trás do lavatório, nos armários, virou os caixotes do lixo do avesso e nada. Nada. Um frio que se lhe apodera do abdómen começa a subir á cabeça. Ele não sabe da gilette nem da gaija. Ela é uma puta vingativa mas não anda a dormir. Quando o frio lento como o toque da morte chega á cabeça do Rolando-30-Contos, uma visão assombrosa assalta-lhe a alma que geme de dor.

Sem mais nada corre aos tropeções como se não houvesse amanhã em direcção ao templo. Corre. Vira uma esquina e vê a porta da vedação escancarada.

Entra e avança em desespero. Os rouxinóis não cantam. Os pavões e as aves do paraíso fugiram para os arbustos. Um ambiente contra-natura de blasfémia e de juízo final envolvem o jardim tal como uma nuvem negra espessa de milhões de pneus de tractor queimados.

Avança com medo e depara com o pior dos seus pesadelos, pior ainda, nunca imaginou tal coisa. A caixinha de cristal partida está espalhada em cacos reluzentes pelo chão imaculado do templo de madeira de cedro. A ex-noiva sentada com o rabo no altar e completamente escarrapachada ensopa a esfregona com espuma da barda.

“Olha meu filho da puta! Julgavas que eu não sabia disto meu panilhas?” Com um gesto provocador e blasfemo, pega na gilette com a sagrada cabeça da lamina montada.

Naquele momento, Rolando-30-Contos envelheceu 15 anos. Nas suas fontes surgiram de imediato cabelos brancos. Um vento frio e sem sentido de existir começa a girar em volta do templo, enquanto a ex-noiva, com alarvantes gargalhadas aproxima a sagrada gilette á sua esfregona.

Tudo parou.

O tempo parou.

A luz, como que bloqueada entre o campo gravitacional dum buraco negro e a zona de escape, torna-se em algo com uma consistência a que eu na melhor da minha descrição posso comparar á espuma amarela de poliuretano.

Ele não se conseguia mexer.

Lentamente, nanosegundo a nanosegundo, vê a gilette a entrar na espuma preguiçosamente espalhada na esfregona.

O tempo volta ao normal e a ex-noiva num movimento, puxa para cima e rapa uma tira de pelão da sua esfregona. O som estaladiço dos pelos duros como palha de aço da réca dela são como milhares de picadas de peixe-aranha que Rolando-30-Contos sentia no coração.


Conspurcada. Para sempre.


Esta memória todas as manhãs volta-lhe a dar a volta á barriga. Os vómitos que puxa já nada teem.

Levanta-se e volta ao sofá. Repara na garrafa junto á janela. Arrasta-se e estica o braço.

Pega nela e dá um gole. Afinal não se pode desperdiçar assim!

A garrafa, estava ainda meio cheia.

sábado, abril 08, 2006

A Tara

Na mão esquerda, segura entre o polegar e o indicador, um recorte de revista já desbotado pelo sol e marcado com dois vincos em cruz, por andar sempre dobrado no bolso de trás das calças de ganga justas.
Este é o recorte duma foto com uma cara sorridente, em três quartos a olhar quase para a máquina fotográfica.
Excita-o.
A merda da fotografia deixa-o louco. Sempre que vislumbra a cara risonha no papel desbotado, há como que algo que o possui. Como um demónio sexual que lhe rasga a carne e faz com que os seus instintos animais saltem para fora. Para fora da braguilha, como é agora o caso.
Sentado no sofá de napa beije, tenta apaziguar a loucura que o toma.
Nunca resiste. Nunca conseguiu atirar aquele papel ao lixo. Treme sempre que se lembra que o tem trás no bolso das calças.

Chega a casa a menina com quem vive. Ela não sabe o que se passa.

Alegremente, entra sorrateira em casa e prepara-se para pregar uma partida ao seu companheiro.

Dirige-se para a sala e ouve um som estranho mas familiar.

Um arfar pesado, um sussurro de insultos. Um som repetitivo, um som besuntado.

Entra na sala.

Sentado, semi-curvado com a foto na mão esquerda e com a mão direita num movimento binário, violento e repetitivo, ele esgalha o marsápio como quem tenta extrair a derradeira dose da garrafa de vidro de ketchup que está mesmo no fim.

“ MAS QUE RAIO É ISTO?? “ grita ela.

Num sobressalto, aperta a foto, amarrotando-a na mão e olha para ela com um ar surpreendido. Nada diz.

“ QUEM É A PUTA? QUEM? DIZ??”

…”não posso…”

Ela, furiosa de ciúmes por causa da brincadeira solitária do companheiro, dá meia volta nos tacões e desanda para a saída.

“ ESPERA! ESTAVA A PENSAR EM TI!!! “

Na caixa de escadas, tenta atacar as calças, mas tropeça e cai.

Ao cair bate com a cabeça na esquina da guarda das escadas e desmaia. De rabo para o ar fica deitado no chão frio. A mão que estava completamente fechada como uma ostra abre e deixa a foto amarrotada á vista.

Ela ao ver a queda assusta-se e sobe o lance de escadas a correr para o acudir. Segura na cabeça dele e coloca-a no seu colo enquanto chama por ele.

Repara na mão aberta e no papel amarrotado.

Ela não resiste.

Vê.

Mas não acredita.






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