A aplicação teórica de assuntos práticos e relativos á questão do ser adjudicado à alma do animal que nasce dentro de todos nós.

sábado, julho 21, 2007

Os Inóticos. Capitulo 1 Parte 3

*

Raul chegou finalmente à editora Boa — Esperança. Entra para a recepção e senta-se num banco a descansar. O autocarro teve uma fuga de óleo devido a uma curva mal feita pelo piloto, quero dizer, o motorista. Este levou o chaço para cima do passeio, bateu numa boca de incêndio, raspou com parte inferior e partiu o cárter. O pobre ho­mem não parava de dar murros na cabeça com as luvas do Fangio e dizia:

— Aaaaiiiii, como é que eu falhei aquela chicane!

O facto é que o autocarro ficou empanado em cima da ponte suspensa que atra­vessa o rio e Raul teve que fazer o resto do caminho a pé. A editora ficava a uns quinhentos metros dali mas sempre a subir.

Enquanto descansa Raul examina a recepção do edifício. É particularmente feio! Tem as paredes pintadas de cor-de-rosa e um quadro, uma imitação foleirissima dos quadros neoplasticistas, que não passava de um monte de quadrados e rectângulos to­dos mal construídos. Violava todas as regras deste estilo. Tem os quadrados pintados de azul e roxo e no fim está a assinatura que diz “Pitere Mandriam”.

Este quadro deprimente quase virou o estado de espirito de Raul e por pouco ia ter que mudar de penteado. Ao desviar os olhos daquela parolice, Raul repara que na parede ao lado está um placar de afixar recados e mensagens que diz “Oferta de Em­pregos”. Já mais composto Raul levanta-se e vai ler o lá está escrito. Não tem nada de interesse excepto uma oferta de emprego que diz: “Procuram-se pessoas com o mínimo de capacidades literárias, para serem mentores de alunos de um curso por correspon­dência publicado por esta editora.”, por baixo estava escrito a letras gordas “TRABALHO FÁCIL”.

— Bem, era capaz de ser interessante! — pensou Raul — Mas acontece que eu tenho grandes capacidades literárias e eu não quero andar a trocar correspondência com um parvo qualquer. Eu estou muito ocupado a escrever e além disso vou ficar rico com a venda das minhas lindas histórias para crianças!

Raul olha para o relógio e vê que já chegou a hora da sua entrevista com o editor. Empurrou uma grande porta de vidro escuro com as palavras “Boa Esperança” estam­padas bem no meio. Procura alguém mas a sala está deserta. Ao fundo encontra-se a mesa da secretária ou se preferirem, a secretária da secretária. Raul aproxima-se da mesa e vê um papel em cima do teclado do computador com a mensagem tradicional do “Volto já”. Em cima da mesa também está uma placa com o presumível nome da se­cretária. Menina Joana.

Olha em volta para apreciar a sala e vê numa das paredes um quadro de Van Gogh. Era a “jarra com doze girassóis”. Como era um apreciador de qualquer forma de arte, aproximou-se para o contemplar. Quando chegou mais perto pode notar que o quadro não é uma reprodução industrial, mas sim uma cópia. É uma cópia feita a mar­cador e falta um girassol, um pequenino que está virado para baixo na parte esquerda da jarra. As cores utilizadas são fluorescentes. No fundo do quadro ao contrário da obra original está a assinatura que diz “Bissente Bamgogue”.

Perante semelhante pirosice Raul gritou:

— Béééééééééé! Nossa Senhora! Que aberração! É mesmo parolo! É uma bode­guisse!

Entretanto, a menina Joana entra na sala e vê Raul com as unhas cravadas nas bo­chechas a blasfemar contra o autor da obra.

— Isso é um insulto ao Van Gogh não é senhor... — perguntou a menina Joana ao misterioso critico de arte.

Sem se virar, Raul respondeu:

— Senhor Pinha. E você tem razão! Isto nem para limpar o cú serve, porque o papel é muito duro e ainda por cima a tinta pode dissolver e ficamos... — de repente Raul vira-se e fica sem fala.

A visão da menina Joana deixou-o de queixo caído. Também perante qualquer mulher bonita, o Raul fica quase sempre sem fala e com a cara toda vermelha.

A menina Joana ao ver Raul especado a olhar para ela, com aquela poupa enorme, que parecia o escudo anti-bala do Aston Martin do James Bond e aquele queixo caído com a saliva a escorrer-lhe pelo pescoço abaixo perguntou-lhe:

— O senhor está bem?

— Grllghhããã!

— O quê? — disse a menina Joana sem perceber o que Raul estava a dizer.

Raul para evitar o embaraço, abanou a cabeça afirmativamente e com a mão es­querda puxou a boca para cima, já que o seu queixo tinha ficado encravado.

— Oh, ainda bem senhor Pinha — disse sorrindo — o senhor Barracuda está à sua espera no gabinete. Pode entrar.

Sem tirar o olhos da menina Joana, Raul foi à procura da porta, mas como não via por onde andava, mandou uma turra fenomenal na porta. A menina Joana sorriu para ele e piscou-lhe um olho. Perante isto Raul quase teve um colapso cerebral e deixou cair a pasta que leva debaixo do braço.

— Eh pá — disse Raul todo atrapalhado.

— Deixe que eu apanho.

A secretária entrega a pasta a Raul e este faz um sorriso forçado para parecer que está descontraído e entra na sala do editor a dizer adeus com a mão. Virou-se para den­tro ainda com a imagem daquela rapariga no cérebro e por pouco não tem mesmo um colapso cerebral. Nunca vira um homem tão feio nem tão gordo. Era careca, só com alguma penugem atrás das orelhas que tinha deixado crescer para pentear para o lado e desta forma tentar disfarçar as manchas rosadas que tem no crânio. Tem uma pêra fel­puda, brilhante, toda lustrosa devido ao suor. A sua camisa tem duas grandes rodelas molhadas debaixo dos sovacos.

Com coragem Raul foi-se aproximando e disse:

— Bom dia senhor Barracuda. Eu sou o Raul Pinha. Aquele que vinha apresentar as histórias para crianças.

— Sim, sim eu sei — respondeu Barracuda sentindo-se um pouco ameaçado ao ver aquela poupa monstruosa — Mostre-me lá a história que me trouxe para ler.

Raul abre a pasta e entrega uns papeis ao gordo.

— É só isto?

— É sim, mas com os desenhos tenho a certeza de que vai ficar muito mais inte­ressante.

— E de que trata essa história?

— Ah, é sobre um gato e uma menina. Ensina ás crianças que não se deve fazer mal aos animais.

— Estou a ver...

Barracuda levanta o enorme rabo da cadeira que heroicamente o tem suportado ao longo dos anos, e começou a andar pela sala constantemente a limpar os sovacos com um lenço de bolso e a beber Coca-Cola.

— Vamos lá ler a sua história, senhor Pinha.



Era uma vez um gato.

O gato estava cheio de fome e andava à procura de comida. Ia ele todo lampeiro pela rua abaixo quando viu uma menina que tinha comido muito a vomitar. O gato chegou-se ao vomitado e lambeu tudo. Só que a menina tinha comido uma comida muito picante e o gato ficou cheio de sede e com a língua a arder. Correu quanto pode e avistou uma casa com uma janela aberta. Espreitou para dentro e viu uma panela ao lume. Correu para a panela e debruçou-se na borda para beber a água. Entretanto apareceu a menina e empurrou o gato para dentro da panela de água a ferver com batatas. Então a menina fecha a panela que era de pressão e deixa o gato lá dentro a ser cozinhado. Ainda se ouvia o gato a miar e a arranhar a panela debatendo-se o mais que podia para poder sobreviver e sair daquela panela de pressão com agua a ferver e batatas, mas a única pessoa que ouvia os gemidos do gato era a menina que se ria imenso do gato.

Horas depois chegou a mãe da menina. Abriu a panela, e sem ver, despeja o conteúdo da panela numa travessa ficando o gato por baixo das batatas todas.

A mãe da menina leva a travessa das batatas com o gato morto por baixo para a sala porque é lá que estão os convidados. Os convidados começam a tirar as batatas e vêem o gato esparramado com a língua de fora, os olhos virados e o pêlo a sair todo agarrado ás batatas.

Perante isto os convidados vomitaram todos as torradas com patê e queijo fundido e o vinho verde que tinham comido como aperitivo na carpete persa que estava por baixo da mesa. A mãe da menina tinha muito orgulho nesse tapete porque o tinha comprado a um mouro que lhe tinha pedido cem contos pelo tapete e lho tinha deixado por cinco.

A menina riu-se tanto que até lhe deu a volta à barriga e teve que ir à casa de banho com um ataque de diarreia.

À noite a menina foi dormir. Já passava da meia noite quando ela começou a ouvir uma coisa muito estranha ao lado da cama. Era como se estivessem a arranhar um quadro negro, ruído que ela conhecia muito bem, pois ela o fazia muitas vezes na escola só para destruir a paciência da professora, coitadinha. A menina olha para o lado e vê o fantasma do gato que ela tinha atirado à panela de água a ferver com batatas nessa mesma tarde! A menina volta a ter um fenomenal ataque de diarreia, mas este provocado pelo pânico que sentia naquele momento. O gato agarra a menina por um braço e num segundo desaparecem os dois e voltam a aparecer num sitio desconhecido. A menina estava agora dentro dum panelão com água a ferver e batatas. Ao seu redor estava o fantasma do gato a rir-se imenso mais uma multidão de demónios com a língua de fora, a lamber os beiços e a esfregar a barriga, juntamente com o fantasma da professora dela, coitadinha que teve uma trombose devido aos nervos que a menina lhe fez nas aulas.

fim.

— Então, gostou senhor Barracuda? — pergunta Raul ansioso por ouvir uma res­posta.

Barracuda está especado no meio da sala, branco como a cera.

Depois começa a ficar amarelo e a seguir, devido a um reflexo inato ocorrido no seu estômago, é obrigado a correr para a casa de banho com as bochechas inchadas. Passados dez minutos, Barracuda sai da casa de banho a tremer, com a testa suada e vai sentar-se na sua cadeira.

Então? — pergunta Raul já impaciente.

Bem... — Barracuda olhou para o Raul, teve um arrepio na espinha e pensou: — E se por trás daquela poupa enorme ele trouxesse alguma arma escondida ou quem sabe talvez até uma bomba? É que quem escreve coisas destas para crianças é capaz de tudo! Este tipo é um terrorista! — Ããããããh, bem, sabe, nós estávamos à procura de algo dife­rente, mais suave sabe? É que as crianças têm medo de fantasmas e demónios sabe?

Estou a ver. Mas eu tenho em casa histórias mais suaves! Se quiser eu venho mostrar-lhe outra.

Barracuda olha outra vez para a poupa do Raul, limpa o suor da testa e dos sova­cos com o lenço, bebe um golo de Coca-Cola e responde:

— Bem, ãããããããh, com certeza. O senhor pode voltar para a semana pela mesma hora se desejar.

— Fiche! Assim tenho tempo de preparar tudo. Muito obrigado senhor Barra­cuda.

Raul despede-se da bola de sebo e sai do gabinete. À saída encontra a menina Jo­ana na secretária a limar as unhas. Despede-se dela um bocado à rasca, enquanto esta lhe responde com um beicinho.


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